Dalton Martini registrou em seu nome 10 mil hectares de área considerada berço de etnia, que guarda ainda memórias do local; para ele, ‘nunca houve indígena lá’
O indígena Canisio Kayabi, 73, mostra foto antiga tirada de cacique de sua etnia no território do Batelão (MT), que sofre ocupações como uma fazenda do vice-prefeito de Sinop, que nega o direito dos moradores originais da região
sinop (mt) e são paulo O vice-prefeito de Sinop, no norte de Mato Grosso, anda irritado com o prefeito do município. Dalton Benoni Martini (PTB), 65, foi eleito em 2020 para ser o número dois da prefeitura, depois de exercer por quatro vezes o mandato de vereador. Prefeito e vice-prefeito brigaram e, agora, são inimigos políticos.
“Tenho paixão por essa cidade. A gente ia fazer uma administração a quatro mãos. Estamos rompidos”, diz Martini, bolsonarista que tentou se eleger deputado federal em 2022, sem êxito.
A briga com Roberto Dorner (Republicanos), porém, está longe de ser o principal embate travado por Martini, gaúcho que vive em Sinop desde 1978 e que ganhou dinheiro com o agronegócio —especialmente com pecuária e plantação de soja e milho— e com a exploração de madeira.
O empresário ocupou terras produtivas a pouco mais de 200 km de Sinop, no início da década de 1990, e desde então se dedica a negar a existência dos indígenas kawaiwetes —os kayabis, como são conhecidos— da Terra Indígena Batelão, onde estão as fazendas de Martini.
“Nunca teve indígena lá”, afirma o vice-prefeito, que se apossou de 10 mil hectares do território tradicional para criar gado, plantar soja e milho e explorar madeira numa área da Amazônia que já foi preservada um dia. “Índio não quer mais terra. Quer viver como branco.”
As palavras de Martini fazem parte de uma ampla estratégia —política, judicial e econômica— para apagar a história dos kayabis.
A Terra Indígena Batelão, com 117 mil hectares, é considerada o berço dos kayabis. Na década de 1940, o governo de Mato Grosso passou a vender ilegalmente pedaços de terra a quem quisesse explorar a área.
Nos anos 1960, em razão de sucessivas invasões e conflitos, principalmente com seringueiros, uma parcela expressiva dos kayabis foi levada pelos irmãos sertanistas Villas-bôas ao Território Indígena do Xingu, sem consenso e sem aceitação por boa parte das famílias.
Alguns resistiram e permaneceram em terras próximas do Batelão. Muitos fizeram o movimento de volta, do Xingu a essas áreas, que foram demarcadas como terra indígena.
Nas décadas seguintes, produtores rurais como Martini passaram a ocupar e a desmatar o Batelão, para pastagem, gado, monocultura e exploração de madeira. São mais de 20, segundo o vice-prefeito.
Quando conversou com Martini, em seu escritório em Sinop, a Folha o questionou se o que ele fez foi grilagem, ou seja, se avançou sobre áreas que não eram suas para, com base em uma ocupação e em documentos ilegais, garantir a propriedade dos terrenos. Martini nega.
“Não é grilagem porque essas áreas foram vendidas pelo governo de Mato Grosso, nas décadas de 1950 e 1960. As minhas, o governo doou para uns belgas”, afirma.
“Cheguei, ocupei e coloquei gado”, diz Martini. “Comprei do seu Anísio”, completa, sem detalhar quem seria o antigo ocupante da terra.
Depois, o produtor rural entrou na Justiça com uma ação de usucapião, com o propósito de comprovar que “estava lá” e que comprou a área há 30 anos. “Os belgas foram localizados no processo. Eu não tinha o título, agora tenho a escritura definitiva.”
Enquanto grandes fazendeiros avançavam pelo território, a ponto de já não existirem mais aldeias na terra Batelão, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) passou a elaborar estudos para a demarcação da área.
Em 2007, o Ministério da Justiça analisou a proposta apresentada pela Funai, considerou que o território era “tradicionalmente ocupado pelo grupo indígena kayabi” e declarou a posse permanente pelos kayabis, etapa que antecede a demarcação definitiva, cuja homologação depende do presidente da República.
No ano seguinte, o ministério recuou do ato, em atendimento a uma decisão judicial. Os fazendeiros que ocupam o Batelão ingressaram na Justiça para barrar a demarcação.
Em 2016, uma decisão da Justiça Federal em Mato Grosso reconheceu a terra indígena como sendo dos kayabis. Novos recursos foram apresentados ao TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, que apontou o direito de os fazendeiros fazerem novas perícias. O impasse jurídico permanece.
“Os kayabis requerem essa área, como memória, mas a perícia está inconclusiva até agora”, afirma o vice-prefeito. “Enquanto isso, tenho dificuldade de vender meus produtos para trades e frigoríficos, de obter financiamento, de georreferenciar a área. No Sigef [Sistema de Gestão Fundiária, do Incra], aparece como terra indígena. Quem quer comprar de uma terra indígena?”
De Sinop, a Folha foi até o Batelão, a poucos quilômetros de Tabaporã (MT) —as cidades são separadas por cerca de 200 km. A reportagem também foi à Terra Indígena Apiaká-kayabi, onde estão os kayabis mais próximos do Batelão. O território é demarcado e fica a 50 km de Juara (MT).
No Batelão, vastas plantações de soja e milho ocupam o espaço. O mesmo ocorre com pastagem e gado. Há sinais de exploração de madeira, com placas indicando manejo para essa atividade.
Martini fixou pelo menos duas placas na área. Uma diz: “Fazenda Nova Andradina (Tucandira). Prop. Dalton Benoni Martini.” A outra aponta: “Fazenda Arara Azul. Proprietário: Dalton B. Martini.”
Em 2010, Martini foi preso em operação policial contra exploração ilegal de madeira, como ele mesmo conta. Segundo o vice-prefeito, a atividade era legal. Ele continua explorando madeira na área da terra indígena, conforme afirmou à reportagem.
Na terra Apiaká-kayabi, estão indígenas que dizem não esquecer o Batelão. Na aldeia Tatuí, a Folha conversou com três indígenas que dizem ter nascido no Batelão —e que passaram por processos de diáspora que estão no cerne do esvaziamento do local.
Canisio Kayabi, 73, guarda numa pastinha amarela a reprodução de fotos do cacique do Batelão levado ao Xingu pelos Villas-bôas; fotos de parentes do cacique que tiveram o mesmo destino; e mapas feitos à mão da terra indígena.
“Fui para o Xingu entre 1965 e 1966. Havia conflito com seringueiro. Fui com 15 seguranças dos Villas-bôas”, diz Canisio, que prefere falar na língua-mãe. A tradução foi feita por um de seus filhos, Kawayp Katu Kayabi, 37, presidente da Associação Indígena Kawaiwete.
“Eu gostava do Xingu, mas queria vir para cá. Eu nasci aqui”, afirma. “Batelão ficou vazio, mas quem é de lá nunca esqueceu.” Para trás ficaram os ancestrais, segundo Canisio. Estão enterrados lá seus avós, bisavós e tataravós.
Canisio já esteve com Martini, na aldeia onde mora desde que deixou o Xingu. “Ele fala bonito. Tenta levar na conversa dele, que índio não quer mais terra. Mas aqui ninguém esqueceu.” Por duas vezes, grupos de kayabis tentaram ingressar na terra Batelão. Foram barrados por fazendeiros e seguranças.
O avanço de grandes produtores rurais por áreas preservadas da Amazônia, a exemplo do político de Sinop, foi detectado pelo Simex (Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira), que usa imagens de satélite para mapear locais com esse tipo de atividade. A análise é feita pelas organizações Imazon, Imaflora, Idesam e ICV (Instituto Centro de Vida).
Os dados mais recentes do sistema, de 2021, apontam para ao menos quatro casos de extração não autorizada de madeira em Mato Grosso entre agosto de 2020 e julho de 2021, envolvendo áreas protegidas e indícios de grilagem.
Sobre essas áreas em que não poderia haver retirada de madeira, por serem estações ecológicas e terras indígenas, foram registrados CARS (Cadastros Ambientais Rurais), documentos necessários para a regularização de terras no Brasil. O registro de CARS por grileiros é frequente, já que o dispositivo depende de autodeclaração na etapa inicial.
O banco de dados da pesquisa registra dois casos de produtores de Sorriso, cidade a 85 km de Sinop. Há indícios de exploração ilegal de madeira na Estação Ecológica do Rio Roosevelt, em Colniza (MT), em áreas coincidentes com as indicadas em CARS feitos em nome dos dois empresários.
Um é Fernando Pozzobon, integrante do conselho do Sindicato Rural de Sorriso e presidente da cooperativa dos produtores de algodão da cidade. “A área foi adquirida para regularização ambiental. Vou pedir para averiguarem se essa exploração de madeira atinge a propriedade”, disse.
O outro é Darcy Ferrarin, também integrante de sindicato e produtor de algodão, soja e gado nelore. Procurado pela reportagem, disse estar de férias em Santa Catarina e que não sabia do que se tratava.
Em abril, lideranças kayabis foram a Brasília pedir pressa na demarcação da terra Batelão. Enquanto isso, Canisio tem esperança de voltar para onde nasceu. “Quem está falando a verdade? Somos nós ou são os fazendeiros?”
TV SUPER SINOP CANAL 7.1 / COM Vinicius Sassine e Giuliana de Toledo/Folha de São Paulo